quinta-feira, 19 de julho de 2018

Entrevista: ALICE NIEDERAUER (DEMENTIA A)

Quando você frequenta a Subcultura Gótica, percebe que é um espaço muito devotado a mulher, e que elas, frequentemente são o centro do universo gótico. 
Confira agora uma entrevista exclusiva com ALICE NIEDERAUER, ou DEMENTIA A, como costuma ser lembrada, um exemplo de moça gótica que não se deixa intimidar e que ajudou a colocar Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, entre as cidades com a melhor qualidade de cena para ser frequentada.




1 – Primeiro, gostaria de agradecer imensamente a oportunidade concedida ao nosso zine em poder conhecer um pouco mais de sua história na cena dark. Conta pra nós, há quanto tempo você vive a cena gótica? Como passou à se identificar com a mesma?

Eu quem agradeço, John, pelo espaço para poder estar falando um pouquinho sobre meu trabalho.
Bom, tudo começou em 2001, quando um amigo me emprestou um VHS da coletâneav
 Beauty in Darkness Vol. 3, que além de bandas de gothic metal, continha o vídeo do The Sisters of Mercy – “Temple Of Love”. Na época, eu curtia thrash metal, mas imediatamente me apaixonei por aquele estilo de música. Eu não tinha acesso à internet, então entre visitas a lojas de discos, cyber cafés e utilização do computador de amigos, eu ia pesquisando mais sobre aquele gênero “gótico”. Graças a sites como o “Newgothz”, que jogavam tudo na mesma panela e divulgavam tanto o Gothic Metal quanto Darkwave, eu pude ser direcionada a conhecer este maravilhoso mundo novo (risos). Mais tarde encontrei alguns blogs específicos sobre música gótica e então fui aprendendo a separar as coisas.
Eu fiquei alguns anos sendo uma “gótica solitária”, ficava sozinha apreciando aquele som, não conhecia pessoas que curtissem o mesmo estilo que eu, nem tinha conhecimento sobre eventos.
Mas isso começou a mudar quando eu tive a ideia de formar uma banda. Fiz uns folhetinhos e saia distribuído para as pessoas em shows de metal mesmo (que era o que eu frequentava com meus amigos) “guitarrista procura músicos para formar banda gótica” (risos). Assim fiz alguns amigos, e comecei a ter acesso a informações sobre shows e eventos, mas a banda nunca deu certo...


2 – Como era a cena no Rio Grande do Sul quando você começou a frequentá-la?

Eu acredito que o primeiro evento ao qual eu fui, foi a Gothik Night na NEO, por volta de 2005 - 2006. É a festa mais antiga e persistente do RS, e sempre teve a proposta de ser um pouco mais popular, então lá não se ouvia apenas música gótica. Confesso que fiquei chocada ao escutar Cansei de Ser Sexy tocando na pista e ver pessoas rebolando até o chão ao som de Rammstein. Na época eu ouvia muito Dreadful Shadows, Love Like Blood, Paralysed Age e Nosferatu, e esperava que rolasse algo assim, o que não aconteceu. (Risos)
Mas além disso, havia a Dark City produzida pelo Paulo Momento, em Pelotas, com apresentações de bandas e DJs; e a Psychose, em Caxias do Sul, produzida pelo Nilo Sartori, que também contava com bandas e djs locais e nacionais. Sempre rolavam excursões de Porto Alegre para estas cidades. E em uma destas excursões conheci o Alequis Mekaniquis, que estava começando a desenhar o projeto Penumbra, uma festa voltada à musica industrial, EBM e vertentes. A partir da 3ª edição ele me convidou para discotecar. Eu tinha um bom conhecimento musical, mas não tinha a menor noção de discotecagem. Então nós íamos na casa do Ulisses Righi (coprodutor da Penumbra e membro da Euphorbia e atualmente Seraphim Shock) e eles me passavam as bases de como “apertar o play” (risos). Meu set destoava da proposta da festa, mas tinha um público que ia lá justamente para ouvi-lo. A Penumbra foi um sucesso desde o princípio, a partir de 2010 firmou-se no extinto Dr. Jekyll. E foi só então que eu comecei a frequentar mesmo a cena.


3 – Como e quando surgiu a ideia para criar a Gotik Treffen, que hoje é considerada uma das festas dark com a melhor qualidade do Brasil?!

Durante o período em que eu tocava na Penumbra, eu fazia a divulgação da festa na internet, e percebi que muitas pessoas não compareciam pois não tinham companhia. Então comecei a organizar Encontros Góticos, para que as pessoas se conhecessem, fizessem amizades e claro, participassem dos eventos com seus novos amigos (risos). Só que este público não ouvia apenas música eletrônica, que era o foco da Penumbra. Foi da carência deste público por uma festa que tivesse mais afinidade com seu gosto musical, que em 1º de Junho de 2012, surgiu a Gotik Treffen (encontro gótico, em alemão). Também tínhamos a proposta de fazer algo mais voltado a outras áreas da cultura. Tanto que na primeira edição, no antigo Garagem Hermética, abrimos o evento com um sarau literário. Mas não funcionou muito bem, porque a galera ficou dispersa (risos). As principais diretrizes da Gotik Treffen sempre foram ser fiel aos princípios musicais, promover a cultura e não permitir ou incentivar práticas sexistas. Acho que o amor, honestidade e dedicação com que ela sempre foi produzida, a tornaram tão especial. Tanto que certa vez, recebemos um visitante inglês que disse que na Inglaterra não haviam festas tão boas quanto a Gotik Treffen, com uma discotecagem tão aprofundada.
Sou muito grata porque sempre estive rodeada de pessoas incríveis, que fizeram parte desta história. Bárbara, Bonnie, Cyborg, e a Stephany que foi minha parceirona por muito tempo, emprenharam seus talentos, finanças e deram o sangue para fazer a festa acontecer. E nosso público realmente merecia isso. Nós acabamos fazendo parte da vida uns dos outros, passamos por diversos momentos juntos, com a festa como plano de fundo. Como um amigo escreveu recentemente “a história da Gotik Treffen é um pouco da história de todo mundo que a frequentava”.
Depois nós mudamos de casa, fomos para o Carlitu’s Bar, onde ficamos por mais tempo e crescemos muito. Mas alguns anos depois o bar fechou e pra não deixarmos de fazer a festa, vestimos ela com uma capinha do Dracula e uma máscara, mudamos o nome para “Soturna” e depois “Nocturne” (Risos). Eu fiquei um pouco insegura sobre “queimar o nome” da Gotik Treffen ao ir para um local menor, por isso o disfarce. Ao longo do tempo houveram muitas mudanças entre os DJs, o que mudou a sonoridade da festa, mas a essência permanece a mesma. Como eu mudei para São Paulo, hoje a festa está nas mãos da Ana, Bonnie, Cyborg e Willis, que estão continuando este trabalho.


4 - Você transita bastante entre as cenas de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Na sua opinião, quais são as principais diferenças entre ambas?

A principal diferença é certamente a quantidade de público, o que muda a dinâmica de como as pessoas lidam com a cena. Por exemplo, no RS nós meio que adotamos a política de boa vizinhança. Sempre tem pessoas com quem não concordamos com a visão ou atitudes, mas criar um embate seria prejudicial pra ambas as partes, porque isso acaba dividindo a galera, então geralmente nos apoiamos e toleramos (risos). Já em SP os embates são igualmente prejudiciais, mas o pessoal mete bala em quem achar que tem que meter, sem ter a preocupação de que isso possa acabar com a cena. Outra diferença gritante é o estilo de som preferido de forma geral... Em SP o público ainda é bem apegado à sonoridade dos anos 80, onde mesmo as bandas mais novas tem que ter uma pegada oitentista. Já no RS o pessoal é mais adepto à “Schwarze szene”, tendo preferência pela música eletrônica.

5 – Quais são as suas bandas favoritas?

É bem difícil responder esta pergunta, pois eu ouço muitas coisas mesmo! Principalmente gothic rock, darkwave e synthpop! Mas posso dizer que gosto muito dos trabalhos do Sven Friedrich – Dreadful Shadows, Zeraphine e Solar Fake, Rosetta Stone, Nosferatu, Pretentious Moi?, dos brasileiros do Ego Eris, e tenho ouvido com muita frequência Beborn Beton e Mondträume. Mas isso muda com frequência.


6 – Qual a sua opinião à respeito do atual modelo que vem sendo adotado por grandes festivais ditos “góticos” ao redor do mundo? Você acha válida a parceria entre festivais “alternativos” com corporações multinacionais?

Bom, eu não tenho propriedade pra falar sobre isso pois nunca fui a um festival fora do Brasil. Mas como produtora, eu acho válida sim toda tentativa de melhorar ou simplesmente conseguir fazer a coisa acontecer. Realmente eu não tenho os dados sobre número de frequentadores versus renda gerada nestes festivais, mas se fosse no caso do Brasil, isso seria não apenas válido como necessário, visto que o nosso público, mesmo que seja numeroso, ainda não é capaz de bancar eventos de grande porte apenas com venda de ingressos. Os góticos são em geral bem exigentes com a estrutura dos espaços que frequentam, mas muitos não querem ou não podem pagar os custos disso. Então sou mesmo tri a favor dos patrocínios, desde que não roubem a alma do evento.


7 – Você foi a primeira DJ a tocar na tradicional festa gótica “SoulShadow”, que ao longo de seus anos sempre apresentou DJs homens. Qual a sensação de ter representado as góticas nesse evento?

Obviamente que eu fiquei muito lisonjeada e feliz com o convite do Ivan, quando rolou. Ele é uma pessoa por quem eu tenho um carinho e respeito enormes! E pra mim é certamente um marco, de reconhecimento do meu bom trabalho.
Bom, eu vejo que de uma forma geral, aqui em São Paulo tem pouco espaço para mulheres na discotecagem. Eu mesma vi pouquíssimas vezes mulheres tocando em festas aqui. Acho que já passou da hora de mudar isso... que não precise de um dia especial pra botar as gurias a tocar como “discotecagem só de mulheres no dia da mulher”. Que haja discotecagem só de mulheres, sem ser algo “especial”, da mesma forma que tem discotecagens totalmente masculinas.


8 – Qual a sua opinião sobre os canais góticos que tem surgido no YouTube? E qual a sua opinião sobre a atual cena brasileira?

Eu tenho a impressão de que a grande maioria dos canais góticos do youtube sejam produzidos apenas para neófitos ou pessoas de fora da cena mesmo, visto que apresentam um conteúdo muito superficial a respeito de qualquer coisa. Grande parte são apenas copycats, exato mesmo tipo de conteúdo apresentado por pessoas diferentes, de qualquer parte do mundo! Não vejo originalidade... Falo em relação aos “tipos de pessoas que você encontra na balada gótica”, “tipos de danças góticas”, “arrume-se comigo”, “tour por minha coleção de qualquer coisa”, “como se arrumar pra ir à balada gótica”, e enfim... eu honestamente não costumo assistir aos canais góticos do Youtube, então não conheço muitos. Eu assisto quando tem alguma informação que eu considere interessante, ou alguns tutoriais legais. Por exemplo, assisto ao do Aurelio Voltaire, que dá umas dicas muito legais de decoração doméstica e tem um senso de humor que eu gosto, assisto ao teu e ao do Kipper eventualmente, assistia ao da Madie que era sobre cinema, mas acho que já saiu do ar e o Fantasticursos, que não é gótico mas tem umas mini aulinhas sobre literatura e cinema góticos. Mas enfim, tem todo tipo de conteúdo para os diversos interesses das pessoas. Os que eu não gosto realmente não assisto e fica tudo bem. (Risos)

Muitas pessoas dizem que a cena gótica está morta ou agonizante e eu não consigo concordar com isso. Eu vejo muitas coisas boas acontecendo, bandas maravilhosas surgindo, shows, eventos, tem encontros em diversas cidades, até aqui em São Paulo onde não era tão comum, e eu acho isso importantíssimo para agregar pessoas. Tem coisas acontecendo em cada canto do país! Tem eventos em Manaus, em Goiânia, tem em Recife, Minas, em Curitiba, Porto Alegre, Rio, no interior de São Paulo! O Gerôncio está abrindo um Centro Cultural Dark em Campina Grande, que vai inaugurar em agosto. O pessoal do Sebo Clepsidra tem lançado várias obras na própria editora. Tem a revista Gothic Station do Kipper, que é um material de qualidade profissional, que era pra estar sendo vendido nas bancas. O Paulo Renato está lançando uma Web TV: “Arcadia” (se não me engano), que vai trazer muita informação pra galera, com programa de entrevistas e apresentação de bandas, parece que vai haver uns programas sobre literatura e HQs também... Estamos presenciando o retorno dos zines impressos! Temos selos especializados, o Woodgothic bianualmente... Acho a nossa cena incrível, rica!


9 – Qual a maior dificuldade que existe, atualmente, diante da cena gótica no Brasil? O que, em sua opinião, é necessário fazer para melhorarmos o nosso espaço?

A maior dificuldade é que essa galera cheia de transtornos se entenda! Brincadeira. Acho que ainda é a falta de engajamento do público. Eu gostaria de ter esta resposta... sobre o que podemos fazer pra melhorar... Mas realmente não tenho. Sempre achei que faltasse união na nossa cena, apoio mútuo, sabe? Uns comparecendo aos eventos dos outros, membros de banda prestigiando apresentação de outras bandas, galera consumindo de quem produz arte, ou literatura ou materiais e acessórios mesmo... agora como estimular este comportamento no pessoal, eis a questão!


10 - Quais são seus planos para o futuro? Soube que você entrou para o time do Scarlet Leaves, você confirma isso?

Sim, é verdade. Fazia algum tempo que o Paulo Pwyka (tecladista) não estava conseguindo conciliar os compromissos do Scarlet Leaves com sua agenda pessoal. Tanto que no último show da banda, que foi em Porto Alegre, apresentaram-se apenas a Andreia e o Audret, que tocou guitarra e teclado. Então quando houve a decisão do afastamento do Paulo, o Audret achou que seria muito mais fácil encontrar outra pessoa para tocar guitarra do que outro tecladista... porque tu sabe... se chutar uma árvore caem três guitarristas (risos). Eu estava há mais ou menos 14 anos sem tocar, mas como eu comecei aprendendo a tocar thrash metal, adquiri uma certa habilidade, afinal é um estilo que exige bastante. Então o Audret me convidou para fazer um teste e parece que eu passei (risos). Isso foi algo muito feliz para mim, porque eu já conhecia e curtia o Scarlet Leaves, mas a primeira vez que os vi ao vivo, foi no Wave Summer Festival, e na minha opinião foi o melhor show do festival. Tanto que foi a partir dali que comecei a ter contato com o Audret, porque queria levá-los para tocar em Porto Alegre. E agora eu estou na banda! Claro que estou sentindo o peso da responsabilidade. Não acho que seja capaz de “substituir” o Audret, ou mesmo o Paulo como membro, pois ambos são multi-instrumentistas, são excelentes compositores, e eu estou recém recuperando a memória muscular. Mas espero não decepcionar os fãs, o que também me inclui.
Temos um show marcado em Olinda/PE, que será minha estreia e a gravação de um acústico, que deveria acontecer no segundo semestre deste ano, mas com mais mudanças na formação da banda, teve de ser adiado. Acredito que ainda saia no primeiro semestre de 2019.
Vou estar discotecando dia 29/09 em Araras no festival Decadance, para o qual estamos organizando excursão.
Mas meus planos a nível pessoal estão temporariamente adormecidos.


11 – Deixe um recado para os nossos leitores.

Primeiro quero te parabenizar, John, pelo trabalho que tens feito com o zine digital, levando informação para as pessoas.
Quero agradecer a quem teve interesse e leu até aqui (risos) num mundo dominado por memes e mensagens curtas, a leitura é rebeldia.

6 comentários:

  1. Que entrevista maravilhosa!Parabenizo tanto a entrevistada,por compartilhar um pouco de sua vivencia na cena,quanto à você John pelo trabalho empenhado :)

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    1. Muito obrigado, Demétrio! Tu é muito querido e um dos meus leitores favoritos aqui no zine!

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  2. Adorei a entrevista, passarei a acompanhar teu trabalho. Nos vemos na próxima Nocturne, um grande abraço!

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  3. Grande amigada cena gótica, Alice. Bom trabalho The Gothic Nerd!

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  4. Muito obrigado, pessoal!
    Não se esqueçam que domingo tem Encontro Gótico, na casa da Cultura.

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